Luis Felipe Miguel
A Folha de S. Paulo de hoje não foi capaz de conceder a manchete ao grande ato contra Temer na Avenida Paulista, mas deu uma foto na capa. Desistiu da tática de minimizar as manifestações, certamente porque ela se esgotou.
A chamada de capa é deliberadamente ambígua: "Ato pacífico contra Temer termina com bombas em SP". Como assim, pacífico com bombas? O texto admite que foi a PM que lançou as bombas, mas conclui afirmando que policiais e manifestantes "divergem" sobre o que chama de "confusão". O objetivo parece ser reduzir a adesão aos próximos protestos, fazendo com que comparecer a eles seja visto como algo arriscado.
Logo abaixo, outra chamada, para o artigo de ninguém menos do que Vinicius Mota - um dos vermes de redação mais desprezíveis do País. Embora sem nenhuma relação com o ato da Paulista, o texto apresenta a chave que o jornal quer fornecer para sua interpretação: a "elite vermelha" gosta da violência.
E embaixo dele, outra chamada, sem conexão com o assunto, fala da necessidade de "conter o crime". Mera coincidência?
Até aí, nada de novo sob o sol. O discurso da "violência" das manifestações antigolpistas dá a tônica das reações do usurpador e da mídia que lhe serve. Isso já era esperado.
Os líderes dos protestos se esforçam por demonstrar que isso não é verdade. As manifestações são cada vez mais pacíficas, ordeiras, cordatas. Uma reação compreensível. Mas acabam por incorporar, ainda que tacitamente, um enquadramento perverso do problema.
A ideia subjacente a este enquadramento é que, se não há vidraça quebrada, não há violência. E como chamamos aquilo que foi feito com nossa democracia eleitoral? Como chamamos o ato de jogar 54,5 milhões de votos no lixo? Como chamamos destruir direitos, aumentar a exploração do trabalho, empurrar as mulheres para fora da esfera pública?
Nem é só o golpe. Nossa sociedade é movida a formas de violência que são invisíveis. A violência das regras, das práticas e dos sistemas que permitem que a riqueza e o poder sejam apropriados por poucos e que muitos sejam jogados às margens.
Embora seja "estrutural" e "sistêmica", essa violência também chega aos corpos. Ela deixa marcas, ela adoece, aleija e mata, pela privação e pelo
desespero.
Um governo que despreza o resultado das eleições, que promove a superexploração da classe trabalhadora, que vira as costas para os direitos das mulheres, da população negra, dos povos indígenas, de lésbicas, gays e travestis, que nega a saúde e a educação a quem precisa: esse é um governo violento.
Sua violência se manifesta, também, na violência física aberta, das forças de repressão, como sabem sempre as periferias e, quando o conflito político se agudiza, também os manifestantes políticos à esquerda. É a violência "legítima", que teria como objetivo a manutenção da ordem. Mas "ordem", nós sabemos, é um codinome para a paz da vigência da dominação.
A violência dos dominados é uma reação a essas violências permanentes que pesam sobre eles.
Isso não quer dizer que não seja de fato violência - por vezes brutal. Não é possível simplesmente exaltar a violência porque nasce dos dominados. Às vezes, ela se torna incontornável, mas mesmo assim é um remédio ruim.
Tendo a pensar que a violência contra pessoas é sempre má e deve ser evitada, exceto nas circunstâncias mais extremas, quando toma a forma de autodefesa imediata. A violência contra bens públicos é burra, por prejudicar em primeiro lugar seus usuários. A violência contra a propriedade de indivíduos particulares prejudica pessoas que não são culpadas pela dominação, em geral simples trabalhadoras e trabalhadores que tiveram a sorte de conseguir reunir alguns bens com seu esforço.
Mas a violência contra o patrimônio das corporações coloca questões de outra natureza, muito mais pragmáticas do que éticas. A cada momento, é necessário medir se ela, por seus efeitos materiais e simbólicos, amplia os custos da dominação ou se apenas favorece a escalada da repressão.
Tendo a julgar que, no momento, a alternativa correta é a última. Mas não é uma questão de princípio; é uma questão de avaliação.
Também é de outra natureza a questão da autodefesa contra a repressão policial. Receber cacetada, bomba de gás, spray de pimenta, bala de borracha, com consequências por vezes graves, não faz parte dos deveres da cidadania. Formas de proteção podem ser necessárias e não são ilegítimas.
Por isso, acho errado que a esquerda na rua recuse de antemão quaisquer adeptos das táticas black bloc ou decida, também de antemão, que são todos agents provocateurs. Ao contrário, é necessário dialogar com eles e respeitá-los.
Se o preço a pagar pela queda do governo golpista fosse uma meia dúzia de sedes de bancos depredadas e uns tantos pneus ardendo na rua, certamente valeria a pena.