Publicidade governamental e terrorismo

Luis Felipe Miguel

No Mudança estrutural da esfera pública, Habermas assinala a subversão do princípio da "publicidade governamental". Exigia-se publicidade dos atos do governo, a fim de que os cidadãos pudessem supervisioná-los e formar seu juízo. Mas a publicidade tornou-se uma forma de manipulação da opinião pública, um mecanismo para produção de uma integração social forçada. Em vez de ampliar o controle da cidadania sobre o governo, serve para ampliar o controle do governo sobre a cidadania.

A campanha do governo ilegítimo sobre a reforma da Previdência é o melhor exemplo disto. Como de costume, não houve qualquer abertura para o diálogo ou para a negociação com a sociedade – a reforma do sistema previdenciário está sendo imposta, tal como foram impostos o congelamento do gasto social, a entrega do pré-sal ou o apartheid no ensino médio. E o que se vê é uma ofensiva de propaganda em que temas de debate são apresentados como verdades estabelecidas e universalmente aceitas. Não há consenso em relação ao diagnóstico sobre a previdência social, com o famoso “rombo” sendo questionado por especialistas reconhecidos. Não há consenso sobre a forma de enquadrar o problema, com a abordagem do governo, exclusivamente contábil, sendo desafiada por outras, que veem também a previdência como direito social e política redistributiva. Muito menos há consenso sobre o que deve mudar no sistema.
justify;">
A publicidade do governo retira a legitimidade de todas estas polêmicas, apresentando um quadro unilateral, em que diagnóstico, enquadramento e soluções são unívocos. O tom é de terrorismo, com o caos sendo o resultado de uma recusa à perda de direitos. E, como sempre, o apelo é dirigido ao altruísmo da classe trabalhadora, convocada a sacrificar sua velhice em prol de escolas, postos de saúde e estradas. (A possibilidade de cobrir o “rombo”, supondo que ele é mesmo do tamanho anunciado, com uma fração dos lucros do sistema financeiro ou cobrando dos sonegadores nem é cogitada, claro. Altruísmo é para os pobres.)

É muito questionável se a verba publicitária do governo federal poderia ser usada para defender um dos lados em matéria que está tramitando no Congresso Nacional. Claro que tudo depende de qual é o governo: se a justiça impediu que Dilma Rousseff se defendesse do golpe em rede nacional de TV, o que faria caso ela planejasse uma ofensiva de marketing? No caso, a defesa da reforma da previdência trabalha para sufocar o debate, que já é muito restrito na cobertura unilateral dos meios de comunicação empresariais, e manipular a cidadania.

O deputado Ivan Valente entrou com representação junto ao Conar, para que a propaganda do governo seja retirada do ar como enganosa. Sei que o objetivo é chamar a atenção para o problema, sem nenhuma esperança de que sejam tomadas medidas contra o governo, mas tenho dúvidas de se vale a pena pagar o preço de legitimar o Conar. Este “Conselho de Autorregulamentação Publicitária” é a arma pela qual a publicidade posa de responsável e impede que se criem órgãos públicos de regulamentação e supervisão de suas práticas. É como um conselho de raposas boazinhas que cuidam do galinheiro.

Subscribe to receive free email updates:

Related Posts :