Mario Sergio Conti
Além de deixar cartas e ensaios nos quais contou como a sua vida regrada o levou a uma obra subversiva, Freud foi muito bem biografado por Ernest Jones e Peter Gay. Já a psicanálise, com o passar dos anos, vem se retraindo na clínica e se dissipando na filosofia —dois movimentos que o teriam chateado bastante.
Há sentido, então, nesse tempo de depressão e de autoajuda, de retorno do religioso e de medicalização das almas, numa nova biografia do intelectual que disse que a religião é uma neurose obsessiva da humanidade?
Pois "Sigmund Freud", de Élisabeth Roudinesco (Zahar, 528 págs.), mostra que a sua obra e a sua vida ainda têm o que dizer ao presente. O livro pode dizer algo até ao Brasil da regressão iluminista, do golpe democrático desferido por pessoas racionais, interessadas apenas no bem público.
Analista que abandonou o ofício para se tornar historiadora, Élisabeth Roudinesco rastreou arquivos em busca dos temas freudianos que adquiriram maior relevância desde a sua morte, em 1939. A saber, as relações entre feminilidade e patriarcado; entre identidade judaica e nacionalismo; entre a sanidade do indivíduo e a social.
A amarrar todos os temas está o fio desencapado da política. Freud acompanhou a crise que provocou a ascensão do comunismo e do fascismo. Segundo Roudinesco, ele não os confundiu: "percebeu na revolução bolchevique um ideal revolucionário, enquanto tratava a barbárie nazista como uma regressão aos instintos mais assassinos da humanidade".
Por isso mesmo, a biógrafa se espanta com a sua relutância em encarar Hitler. Freud não pronunciava o nome dele, não leu "Mein Kampf", saiu de Viena na undécima hora. Mesmo em 11 de maio de 1933, quando Goebbels ordenou um auto da fé de 20 mil livros "judeus", continuou a ver no nazismo a expressão do antissemitismo recorrente.
Os livros de Marx foram queimados aos gritos de "contra a luta de classes e o materialismo"; os de Freud, com "contra a exaltação dos instintos e pelo enobrecimento da alma". Com um laivo de ironia, e até de otimismo, Freud comentou: "Que progresso fizemos. Na Idade Média, teriam me queimado; no presente, se contentam em queimar meus livros".
A ironia veio a se mostrar macabra. Com a anexação da Áustria, Freud conseguiu se exilar, em Londres. Quatro das suas irmãs, não. Sem que ele soubesse, mas com remorso por não ter conseguido que escapassem, as quatro octogenárias morreram, nos campos de Auschwitz, Treblinka e Theresienstadt.
Como foi fundo no estudo das ligações entre razão e barbárie, a ponto de ter criado o conceito de instinto de morte, Freud era um cético quanto ao progresso. Na hora da regressão real, contudo, acreditou mais nas luzes da razão do que na pulsão cega. Acreditou na cultura que gerou Kant, Mozart e Goethe –e no povo que elegeu Hitler.
Os que pelejam para derrubar a presidente nada têm a ver com o nazismo. Mas, nas franjas do seu movimento, o instinto de morte esteve sempre presente, da arregimentação virtual à avenida Paulista. O monstro dissemina ódio todos os dias na internet, sobretudo nos comentários apócrifos que, no entanto, formam a espinha dorsal de vários blogs.
As palavras que hoje são brandidas para atropelar a soberania popular e restringir a liberdade terão consequência. Palavras sempre geram atos. Já os atos antidemocráticos não geram democracia.