Francisco Costa
Se em mim alguma coisa sobressai é a memória, do tipo que os psicólogos chamam de memória fotográfica (eu não me lembro de ideias contidas nos textos, mas dos próprios textos, o que me permite, mentalmente, lê-los de novo. Mais jovem, quando discutia e fazia uma citação, mais que dizer a fonte, eu dizia o número da página).
Isto desde tenra idade.
Lembro-me muito bem, com riqueza de detalhes, do dia 24 de agosto de 1954, logo de manhã, apesar de só ter quatro anos.
Acordei com fogos de artifício espocando e assustado corri para o quarto dos meus pais, tendo antes que cruzar a sala, e na sala o meu pai sentado, os cotovelos apoiados na mesa, as duas mãos sobre o rosto, chorando copiosamente.
Logo fiquei atento às conversas dos adultos, buscando o motivo de tanto alvoroço: Getúlio Vargas havia se suicidado.
Novinho, desconhecedor da política, da morte e das maldades humanas não entendi nada, só muitos anos depois vindo a entender ainda menos: então parte do povo pobre (sempre morei em bairro proletário, até hoje) solta fogos para comemorar o sangue derramado de quem lhe deu a CLT, tirando-o da semi-escravidão? Regozija-se pela morte de quem lhe deu a Petrobras, a CSN, a Vale do Rio Doce, criando os alicerces que permitiram a nossa industrialização? Está feliz porque morreu quem nos deu leis nacionalistas, defendendo-nos da predação internacional? Comemoram a morte do criador do salário mínimo e das férias remuneradas?
Como assim?
Esses mesmos fogueteiros foram usados pela elite, para permitir o golpe de 64, com o intuito de destruir o legado getulista e nos mergulhar nas trevas da exploração.
Vieram a abertura, as Diretas Já e essas forças entraram em latência, na hibernação dos que esperam a oportunidade propícia para se manifestar.
Anteontem, sabedores da morte de Dona Marisa Letícia, começaram um buzinaço na Paulista, em comemoração, e ensaiaram panelaços, também em comemoração (que me perdoem os paulistas politicamente lúcidos e de bom coração, mas São Paulo está ficando para o Brasil como Berlin esteve para a Alemanha nazista).
Um neurocirurgião postou nas redes sociais, para os seus colegas de profissão, como matar Dona Marisa, esta mesma classe médica que foi contra a vinda de colegas cubanos porque seria uma ameaça aos seus lucros pecuniários, uma categoria que deveria ser a inimiga da morte e que a usa de acordo com as próprias conveniências, para atender as leis de mercado (eu e meu irmão discutimos muitas vezes, com médicos que queriam desligar os aparelhos e interromper a medicação de suporte, da minha mãe em 9 meses de agonia, em nome de interromper o sofrimento. A verdade era outra: uma velha ocupando um apartamento no hospital dá menos lucro que se esse apartamento for usado com parturientes, em alta rotatividade. Só não o fizeram diante da nossa ameaça de pedir exame cadavérico com perícia policial, se desconfiássemos de alguma coisa).
Vamos às redes sociais e há comemoração pela morte da mulher de Lula, há piadinhas infames.
Num quadro assim nada mais natural que o crescimento na intenção de votos em Bolsonaro, na criação de grupos, nas redes sociais, de apoio a ele.
Bolsonaro é racista, mas no seu séquito de fãs muitos negros. Bolsonaro é machista, misógino, mas entre os seus futuros eleitores, muitas mulheres. Bolsonaro é homofóbico, mas entre os que o apoiam, muitos homossexuais... E como entender isso?
Para os adeptos do bolsonarismo, ser racista, misógino e homofóbico são pequenos pecadinhos diante da sua grande virtude, para eles: Bolsonaro encarna o ódio, o ódio que cultuam e externam.
Bolsonaro é a antipolítica, na medida em que a política é o democrático embate dos contrários.
Bolsonaro é adepto da ditadura, das torturas, do extermínio de tudo o que o antagonize ou contrarie.
Por isso esse apoio dos netos dos fogueteiros de 54, dos filhos dos “bons cristãos” que estavam na Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, em 64.
Não, o fascismo não está de volta. O fascismo está aproveitando o momento para se manifestar, já que sempre esteve entre nós.
O que os seguidores de Bolsonaro, negros, pobres, homossexuais e mulheres não sabem é que os negros, homossexuais e judeus que apoiaram Hitler foram os primeiros a conhecer os fuzilamentos sumários, o trabalho escravo e os fornos crematórios.
Mesmo os que tinham motivos para apoiá-lo viram as suas casas em ruínas, os patrimônios reduzidos a zero, enterrando filhos, pais, vizinhos, vítimas das bombas aliadas.
O bem sempre vence o mal, porque o mal é só uma referência para o bem.