Criancice


Luis Fernando Verissimo

Quem, entre nós, nunca sonhou em ter um suprimento inesgotável de sorvete que atire o primeiro Häagen-Dazs. Era um desejo infantil, um desejo que se dissipava na adolescência, quando passávamos a sonhar com outras coisas. Mas o poder dá a quem o tem a sensação de que pode realizar tudo, inclusive fantasias infantis. O presidente americano George Bush — o lamentável pai, não o lamentável filho — disse certa vez, meio brincando, que nunca gostara de brócolis e que agora que era presidente não precisava comer brócolis. Quem, entre nós, nunca sonhou em não ser forçado a comer brócolis, ou comer espinafre, ou tomar banho, ou ir ao dentista, ou arrumar o quarto?

Eu sei que não foi o Temer que pediu 500 potes de Häagen-Dazs para o avião presidencial, o que, além de um exagero, seria uma desfeita com a Kibon. Mas os 500 potes de Häagen-Dazs servem como metáfora, tanto quanto as joias da mulher do Cabral e outros acintes, para uma espécie de delírio que vem com o poder, e que não deixa de ser uma forma de infantilização. Vi, certa vez, um documentário sobre o Frank Sinatra em que ele foi filmado na sua casa, que incluía um enorme salão todo ocupado por uma ferrovia em miniatura. No salão havia uma placa na parede com o frase: “Quem morre com mais brinquedos, ganha”. É isso: quem acumula mais desejos satisfeitos vence, ou é uma criança até o fim.

A quase compra de potes de Häagen-Dazs simboliza um grau de insensibilidade, nesta hora de aperto geral, que também tem algo de infantil, no sentido que crianças não têm senso de medida. Quem decidiu pela compra é uma criança inocente, não importa sua idade. Ou, se cabe outra metáfora, 500 potes de Häagen-Dazs simbolizariam um descaso pela opinião alheia que beira a malcriação. Outra criancice.

Fiquei pensando nos meus próprios sonhos infantis, realizados e não realizados. Não me tornei aviador nem fui morar numa árvore como o Tarzan, e meu consumo de sorvete foi limitado pelas sucessivas ameaças maternas de ter uma indigestão mortal. Mas também me lembro do prazer de ter nas mãos a primeira história em quadrinhos — a cores! E o do primeiro chute numa bola de futebol novinha, no tempo que as bolas tinham a cor do couro. Ou da vez em que... Mas isto é outra coluna.

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