Desde que Pateh Sabally se afogou no canal de Veneza, tenho buscado informações sobre o desastre em jornais brasileiros, italianos e de outros países. Constatei algumas coisas e nenhuma delas é boa:
1. Apesar de sua justa indignação, é raro ver um manifestante que saiba o nome do afogado. É sempre "o rapaz africano", "o jovem africano". Pois bem: o nome dele, favor não esquecer, era Pateh Sabally.
Sim, é verdade que a tragédia individual de Pateh ilustra em parte a tragédia de todo um coletivo, e daí eu compreendo a tentação de apagar a identidade do sujeito, não chamando-o pelo nome. Até acho que não é de propósito. Para muitos bem intencionados, Pateh não existe enquanto alguém que sofre individualmente, o sofrimento dele é o sofrimento de toda a África. Para outros, é um equívoco dissipar Pateh num coletivo. Eu acho os dois extremos errados.
Há muita xenofobia na Itália e na Europa, sobretudo dos europeus entre si. O povo italiano é bairrista e não é raro testemunhar depreciação mesmo entre eles. Já falei sobre isso incontáveis vezes: a forma pejorativa com que alguns nortistas se referem a napolitanos, e por aí vai. Mas há também muita coisa boa acontecendo e um esforço monumental para ajudar pessoas nas condições de Pateh.
2. O jornalismo de telefone sem fio domina. A Revista Fórum diz que O Globo disse. Por sua vez, O Globo diz que o The Times disse. O The Times diz que, segundo o Jornal X, ocorreu Z. Só que o jornal X afirma que ocorreu Z segundo o site de notícias Y. Em um monte de publicações, nem sinal do nome do rapaz. Se o jornalismo virou citação de citação, acho melhor não ler mais nada, pego informações pelo Twitter. Lendo a circularidade de citações de citações de citações, me pego perguntando:
"Alguém procurou a família e os amigos de Pateh?"
"Alguém entrevistou testemunhas do episódio?"
Esse jornalismo circular de telefone sem fio é, ironicamente, um jornalismo de apagamento. As pessoas não existem. Para que conversar com as pessoas? Não falta, contudo, o espelhamento recíproco, o looping inescapável do disse-me-disse.
Daí eu encontro um ou outro jornal em que o jornalista fez exatamente isso. Esses jornais são raros e que bom que eles existem. Conto aqui o que li em alguns jornais italianos, que conversaram com parentes e amigos de Pateh e consideraram o que ficou visível em câmeras de vigilância e em cinco filmes diferentes feitos com celulares:
:: [Um pouco da] História de Pateh ::
Tinha 22 anos e era da Gâmbia. Tinha permissão de residência na Itália, logo não estava "desesperado por não ser aceito". Vivia em uma cidade siciliana. Casou-se na Suíça. Tinha ampla família vivendo legalmente na Alemanha e um primo morando também na Itália.
Voltou para a África e depois retornou à Itália, em condições legais.
No dia em que morreu, a temperatura de Veneza variou de um mínimo de -3º a um máximo de 3º, sendo 0º na maior parte do tempo. A água estava terrivelmente fria, nesse que tem sido um dos invernos mais intensos da Itália nas últimas décadas.
Pateh chegou em Veneza naquele dia. Não morava lá. Sentou-se nas escadas da estação de trem e ficou olhando a laguna.
Levantou-se, deixando a mochila na escada. Foi na direção da laguna, atirou-se na água e ficou lá, flutuando por um tempo.
As pessoas inicialmente não entenderam aquilo como um suicídio. Acharam que era uma pessoa que resolveu nadar na laguna. De vez em quando, algum turista sem noção faz isso: se atira na laguna, mesmo sendo terminantemente proibido nadar ali. Algumas pessoas riram, outras gritaram "tá doido?".
Após um curto tempo, não mais que dois minutos, uma das pessoas que filmava a cena bizarra se deu conta de que algo errado estava acontecendo e começou a gritar "atira a boia!", para um barqueiro. O barco parou e atirou na direção de Pateh não apenas uma nem duas boias, mas cinco.
Ele ignorou todas e chegou a se afastar de uma. Então, afundou e morreu.
No bolso da calça da Pateh, encontraram os documentos dele protegidos por um saco plástico e o bilhete de trem que provava que ele tinha acabado de chegar em Veneza. Ele queria que esses papeis fossem encontrados em seu corpo? Provavelmente sim. Esses documentos mostravam que ele era ganês, estava regular na Itália e morava na Sicília. Nenhuma carta de suicídio, nada.
Ninguém sabe por que Pateh supostamente cometeu suicídio. Ressalto o "supostamente", porque mesmo tudo indicando isso, não temos como saber. E se ele tivesse alguma doença mental, surtou e resolveu nadar? Não temos como saber. Sabe-se que ele se recusou a agarrar as boias. Sabe-se que ele se afastou de uma das boias, a que foi atirada mais perto dele.
O resto é o incômodo não-saber. É tudo suposição: sofria por não conseguir emprego, situação que é similar a de muitos europeus. Teria sofrido uma decepção amorosa? Ninguém sabe, nem os amigos dele, nem os familiares.
Se foi suicídio, Pateh foi a Veneza para fazer isso. Se foi suicídio, escolheu morrer em um lugar lindo, em águas geladas. Pateh morreu pertinho de minha casa. Se eu não estivesse de férias no Brasil, talvez tivesse passado por ele.
:: Os vídeos ::
Os vídeos mostram as pessoas gritando por socorro. Em um ou outro caso, a pessoa ri, sem entender por que o sujeito resolveu nadar em lugar proibido. Em um dos casos, uma mulher fica enfurecida e comenta "seu maluco, você quer morrer? Então morra!". Esses comentários que oscilam entre o riso e a indignação ocorrem nos primeiros segundos, quando as pessoas achavam que era alguém querendo chamar a atenção fazendo maluquices.
[coisa que, aliás, não falta em Veneza]
O vídeo principal que serve como prova do ocorrido apenas mostra um homem italiano gritando para que as boias sejam atiradas para Pateh. Em um dado momento, ele se irrita com a recusa de Pateh em pegar as boias, e o chama de "estúpido".
:: A distorção dos depoimentos ::
Os jornais dizem que Dino Basso, chefe da associação de salva-vidas, disse "não quero culpar ninguém, mas talvez algo mais poderia ter sido feito".
Daí as pessoas distorcem a fala de Basso, alegando que o próprio chefe dos salva-vidas teria dito que alguém deveria ter se atirado ao mar para salvar Pateh. Mas não foi isso o que ele disse.
Ocorre que o procedimento correto em casos de pessoas caídas na laguna durante o inverno gélido [e mesmo fora dele] é atirar boias. Quando isso é feito, até crianças agarram as boias.
Existe, entretanto, uma falha que pode ser corrigida: ninguém havia previsto suicídio ou insanidade. Ninguém havia previsto alguém que recusa as boias. A falha, conforme penso, é não existir uma rede de arraste que puxe a pessoa mesmo que ela escolha se afogar.
:: Boicote a Veneza ::
A Liga da Justiça da Internet já organizou até movimentos de boicote a Veneza. Eu espero sinceramente que isso aconteça, porque a cidade está sendo destruída pelo turismo de massa. Eram 120 mil habitantes em Veneza no ano 2000. Hoje, são 59 mil e há quem me chame de maluco por ter escolhido viver em uma cidade em que às vezes não dá nem pra andar porque as pessoas realmente acham que ninguém mora ali. Outro dia, encontrei um rapaz brasileiro que ficou surpreso ao saber que pessoas moram em Veneza. Ele achava que era tudo um grande parque de diversões. Não me espanta existirem grupos que não veem problema algum em bloquear uma rua inteira pra ficar tirando fotos enquanto anciões de mais de 70 anos tentam desesperadamente passar.
Infelizmente, o boicote não ocorrerá. Em uma semana, quase todos irão esquecer Pateh. Se já não sabem o nome dele hoje em dia, imagine semana que vem. Semana que vem, estarão empenhadas em encontrar outros culpados para odiar. De esquerda, de direita ou de centro, a bile ferve na mesma temperatura, e parte-se do pressuposto de que todos os outros são monstros, apenas eu sou um anjo de candura.
Mas se algum de vocês for a Veneza um dia, ao saírem da Ferrovia saibam - ao ver aquele cenário lindo - que foi ali que uma pessoa morreu. Se você lembrar do nome dele - repito: Pateh - eu vou achar surpreendente. Surpreendentemente bom.