Considerações sobre o caso Bruno, os imbecis das redes sociais, a polícia e o judiciário

Thiago Araujo

A 10 de junho de 2015, Umberto Eco fez uma declaração ("redes sociais deram voz a uma legião de imbecis") que, ainda hoje, é compartilhada exaustivamente, às vezes por autopromoção, às vezes pelo conforto ao saber que nossas angústias são compartilhadas por outros. De fato, o Facebook vem se tornando um ambiente cada vez mais insuportável, não por culpa da plataforma em si, mas pelo fato dela fazer com que nos deparemos com o nível de cinismo, mediocridade e incoerência que marca a sociedade contemporânea. Recordo-me da introdução de “Menos que Nada” (ZIZEK, 2013), na qual o filósofo esloveno demonstra que, se o imbecil está (em termos de Q.I.) entre o débil e o idiota, o significado ganha mais complexidade quando examinamos a raiz etimológica do termo. Em verdade, imbecil parece ser aquele que não tem em que se apoiar.

Todo este alvoroço decorre da soltura de um cidadão que esteve preso preventivamente pelos últimos sete anos. Desenhando: pessoas indignadas pela revogação da prisão de um sujeito que, sem ter sido sentenciado (logo, inocente até que se prove o contrário), esteve encarcerado durante um período absolutamente desproporcional – seja no sentido dos fins declarados desta modalidade cautelar, seja no sentido dos princípios e garantias do acusado.

Examinemos, portanto, algumas das contradições daqueles que não possuem bengala: os desorientados do nosso tempo; os imbecis apontados por Zizek e Eco.

1. Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.

Queridos, a defesa do Estado Democrático de Direito como espaço primordial para que travemos as lutas de classes não admite relativizações entre o modelo acusatório e o modelo inquisitorial. Você não pode defender um direito fundado em garantias e princípios democráticos para uns e o punitivismo mais exacerbado para outros. Não se pode afirmar que a prisão é uma instituição inócua, e clamar pelo encarceramento daqueles de quem não gostamos. Você não está sendo crítico, só está sendo incoerente e, portanto, desonesto, o que, por si só, já demonstra claramente o tipo de pessoa que você é. Não adianta defender Rafael Braga e entrar numa cruzada contra Bruno. (- "Não compare os dois! Rafael é inocente! Libertem Rafael Braga!" - "Leia o item 3.")

2. A fé no direito penal.

A maioria das pessoas que vi defendendo castração de direitos ao ex-goleiro do Flamengo desconhece os aspectos mais elementares do direito penal, processual penal e, obviamente, da criminologia – e vale lembrar que não me refiro apenas aos que não cursaram graduação em Direito, mas também aos que creem que um diploma de nível superior basta para fundamentar uma argumentação lógico-racional. A todos estes eu pergunto: de que evidências empíricas vocês dispõem para defender a hipótese de que o direito penal cumpre os fins declarados da pena privativa de liberdade? Vocês acreditam que o Direito Penal serve como instrumento de transformação social? Com base no quê? E quanto à procedimentalidade exigida pelos diplomas legais? E aquele devido processo legal que vocês tanto defendiam? Sinceramente, vocês criticam muito o juiz Sérgio Moro, mas, ao fim e ao cabo, deveriam sair para tomar um café. Vocês têm muito mais em comum do que sua vã consciência parece desconsiderar.

3. Ele matou uma mulher com requintes de
crueldade.

Não, meus queridos, ele não matou. A regra do jogo é demasiado clara e deve, portanto, ser respeitada: só se considera culpado aquele que tiver sido sentenciado (sentença transitada em julgado, quando não se admitem mais recursos) como tal, em um julgamento. Você tem certeza de que ele fez isso? Guarde isso para você, para as discussões em botecos, para os almoços dominicais etc. Ninguém se importa. Ou melhor: quem se importa não tem qualquer relação com o processo. O mais engraçado é que os absurdos partem justamente dos "especialistas" que atacaram recentemente o STF (corretamente) contra a relativização do princípio (para mim, uma regra) da presunção de inocência.

4. Uma mulher foi assassinada!

Perfeitamente. É natural se colocar em uma posição de solidariedade quando uma pessoa é assassinada – e acreditem, eu me sinto muito mal quando esse tipo de fato ocorre. Outra coisa é confundir solidariedade com vingança e/ou revanchismo. Pautas identitárias não podem se sobrepor às garantias do acusado mediante o pretexto de se fazer justiça. Isto não é justo em nenhuma acepção relevante do termo. E mais: todos os ataques ao Estado Democrático de Direito (fundadas nos objetivos os mais variados) produzem consequências deletérias que atacam frontalmente o saldo civilizatório. Os dados de que dispomos são cristalinos: tais consequências atingem preferencialmente (e de modo quase exclusivo) os mais vulneráveis de cada sociedade - aqueles mesmos que vocês julgam proteger. Parem e reflitam (e releiam o item 2).

O delegado do caso: hoje deputado federal
Edson Moreira da Silva (PR-MG)
Sylvia Moretzsohn 

Eu não quis me meter nessa polêmica, nem vou, porque a reação das pessoas é extremada e eu estou ainda remoendo o texto que preciso escrever. Estão repetindo, inclusive, a história do corpo esquartejado e dado aos cães, que aquele delegado ensandecido contou e a mídia, claro, comprou acriticamente, inclusive fazendo ilustrações. Porque é claro que não basta o assassinato: é preciso apresentá-lo com requintes de crueldade, para atiçar a revolta. Mais ou menos como ocorreu com o estupro dos "33", obviamente um número exagerado: porque não basta um cara estuprar, e quem se revoltou com a história prefere não pensar no motivo que leva as pessoas a necessitar de um número aberrante para se escandalizarem. 

Meu cansaço em relação a isso tudo é extremo. O caso Bruno é um entre milhares que compõem a aberração do nosso sistema jurídico-penal: o sujeito preso por todo esse tempo sem julgamento. E ganha essa expressão porque vira espetáculo (e mesmo os críticos desse processo embarcam na onda). Diante de todas as reações que infelizmente li, gostaria de preencher a lacuna desse discurso indignado: o que propõem? Prisão perpétua? Pena de morte? Essa lacuna não é preenchida, e jamais será, porque confronta a indignação com a falta de solução objetiva, pelo menos dentro do nosso ordenamento jurídico, apesar de evidentemente descumprido (como foi também neste caso). 

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